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Mostrando postagens de julho, 2021

O disco

Sábado. O horário de verão não existe mais, mas Clarice revive memórias quentes de um retorno que não aconteceu. Em frente ao espelho do banheiro, ela ia dizendo adeus a certas viagens cerebrais. Apesar de estar chapada, arrancava a sobrancelha delicadamente. Não sentia aquela dorzinha. Acabara de voltar de mais uma noite vadia, daquelas que você esperava alguma surpresa, mas nenhum malandro tentara algo mais afoito. Todos eram gays. Se bem que ela perdera a virgindade com um. Continuou a sua operação em frente ao espelho, com a pele toda vermelha e os pelinhos da sobrancelha espalhados pela pia de mármore branco. Se sentia como uma personagem do Chico Buarque. A chuva trazia um alívio por causa do mormaço, do cerebral e da estação. Após 15 minutos seguiu até o som 3 em 1 e puxou um LP do Allman Brothers. Desistiu. Recordou-se que Matias, seu ex, que gostava muito da banda. Jogou o disco pela janela. Feliz de Cristiano, que fora acertado pelo álbum, que tinha sido jogado do primeiro ...

Calendário

Gira, gira, gira linda. Rodopia ao som do silêncio e esvazia a mente tentando um suplício. O travar dos dentes acontece ao mesmo tempo que o travar do tropeço. E o seu girar lindo fica estático no tempo. No espaço. No critério. Na ocasião. Na vida. O calor esfria e ela pensa no vazio do corredor. Tira um samba dolorido e acompanha com vocalizes os deslizes do amor narrados pelo cantor. Observa a foto antiga em sua estante e, por um instante, se sente uma vitoriosa. Vai até o banheiro e em frente ao espelho borra o batom em seu lábio, joga uma maquiagem mal desenhada e sorri. Fecha os olhos e fica a se imaginar em um baile colegial, quando era a preferida para se dançar. Caminha até o calendário da cozinha e risca o dia 21 de outubro. Mais um aniversário ela visualiza, sozinha.

Um Beijo Russo

Do lábio a sua vodca, vagabunda. Do meu, o bafo do pós-trabalho. Do encontro, fluido de isqueiro Enquanto sobe o nevoeiro. Do olhar, o estrabismo alcoólico. E dos dedos, a fumaça traiçoeira. Da vivência o derramar da água Que ardente amorteceu a queda. Do vermelho a boca imunda E da cintura um trago mais abaixo. Dos dentes a mordida forte E o sangue a escorrer embriagado.