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O disco



Sábado. O horário de verão não existe mais, mas Clarice revive memórias quentes de um retorno que não aconteceu.

Em frente ao espelho do banheiro, ela ia dizendo adeus a certas viagens cerebrais. Apesar de estar chapada, arrancava a sobrancelha delicadamente. Não sentia aquela dorzinha. Acabara de voltar de mais uma noite vadia, daquelas que você esperava alguma surpresa, mas nenhum malandro tentara algo mais afoito. Todos eram gays. Se bem que ela perdera a virgindade com um.
Continuou a sua operação em frente ao espelho, com a pele toda vermelha e os pelinhos da sobrancelha espalhados pela pia de mármore branco. Se sentia como uma personagem do Chico Buarque.
A chuva trazia um alívio por causa do mormaço, do cerebral e da estação. Após 15 minutos seguiu até o som 3 em 1 e puxou um LP do Allman Brothers. Desistiu. Recordou-se que Matias, seu ex, que gostava muito da banda. Jogou o disco pela janela.

Feliz de Cristiano, que fora acertado pelo álbum, que tinha sido jogado do primeiro andar de um prédio da Guarani. Clarice escutara apenas um "ai" do lado de fora. Fora até a sacada e desesperada, com a chapação já perdida, pedira gritando: DESCULPAS!
Cristiano, com um arranhão na testa, olhara para cima, sorrindo:
- Tudo bem moça, você só me acertou com um Allman Brothers, se tivesse sido com um Ramones, aí a coisa estaria da porra!
Os dois riram.
Três meses depois estariam namorando.

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