Eu estava encostado com a minha guitarra em um quadrado branco. Mais ou menos como a narração daquela canção. Caetano, por que não? Observava as ações auxiliado pelo olhar de um míope repleto de conjuntivite. Meu cigarro era a companhia perfeita para a análise das garotas com os seus jeans de outras estações. Meio Sex Pistols, meio Hannah Montana. A inocência e a carência de noção. Ordem invertida. Desejos iguais.
Iniciei o dedilhado de uma canção do bardo Nick Drake. Errei uma nota. A puta ao meu lado gargalhou. Não tinha ideia de quem era a música, mas percebeu o acorde errado. Apenas retribui sorrindo. Logo um Corcel 72 parou e a moça viajou para mais uma aventura. Só posso dizer que eu as admiro. Coragem é a palavra exata no momento certo. Afinal, algumas partem para o desconhecido, não sabem se vão apanhar, o que o cliente vai pedir, se vão ter que engolir ou cuspir. Certa vez, enquanto eu tocava em um bar-puteiro-espetinhos-cerveja-Pilsen, uma delas chegou com a cara em frangalhos. Tinha levado um ferro de passar na cara. A fuça da guria parecia a de um gato estraçalhado no asfalto. Mesmo assim ela estava contente. Coisas que somente a cocaína proporciona.
Depois de dar um tempo na rua, degustando um Marlboro, fui me apresentar em outro local. Eu já sabia o que ia encontrar: pessoas interessadas em sexo. A música era mero segundo plano. Meu setlist não era muito popular. Tocar Elliott Smith em um puteiro exigia concentração. O inusitado formava uma trilha sonora peculiar para acompanhar as cenas de estrago que eu via conforme ia cantando a noite. Como ninguém reclamava, eu seguia as minhas emoções. Para mim, obscuras eram as situações que eu presenciava. Já os clientes achavam obscuras as minhas canções. Alguns imprimiam suas concepções com olhares de não aprovação e outros simplesmente admiravam as belas curvas de Susy 5, a mais bela do local. E a mais cara.
Às vezes eu cansava da obscuridade e puxava o coro dos contentes tocando "Vou Tirar Você Desse Lugar", de Odair José. Todos a conheciam. Uma linda declaração de amor de um apaixonado que deseja tirar sua prostituta preferida da vida de meretriz. Poucos concordam, mas para mim, Odair José é um cronista urbano, um poeta desgraçado. Quando eu ficava mais bêbado, desistia de seguir um Cat Stevens e começava um Robertão fase 1960/1970. "Pra Ser Só Minha Mulher" era a minha predileta. O taxista Jacinto também gostava. Ele sempre me deixava um trocadinho após a execução dos versos "abra os braços pra me guardar, que eu todo vou me entregar, começo meio e fim e a minha cuca ruim". Nunca tinha percebido, mas me contaram que ele era homossexual.
Terminei meu showzinho no La Amores, onde Susy 5 trabalhava, e segui com a minha guitarra para mais uma caminhada noturna pelas ruas úmidas da cidade. De longe eu ouvia o barulho das ondas morrendo na praia. Ao sair, a voz rouca de Susy me interrompe:
- Garotão, às 7h30 no mesmo local? Eu respondi:
- Claro, café da manhã com um pouquinho de vodca, pode ser?
- Perfeito, assim já lavo a minha boca.
Depois da noitada, sempre tomava café da manhã com Susy. Eu era praticamente o seu psicólogo. Tínhamos transado algumas vezes, mas eu me sentia muito desconfortável. Não gostava de sentir o hálito de outras pessoas esvaindo de sua garganta. Paramos. Agora só conversamos.
7h30. Lá estava eu no Café Paris, uma espelunca que servia o melhor pão de broa da cidade. O lugar fedia queijo, mas o atendimento era ótimo. Peguei um guardanapo e esbocei uns versos. "Vai coração, voa em samba-canção um ritmo de azar, já que o amor é um estado perdido entre o destino e o concretizar". Não tinha muito sentido. Pensei em um sambinha. A métrica não fechava. Quando percebi, 8h15 marcava o relógio. Nem tinha percebido o falecimento dos minutos. Susy nunca se atrasava. No dia seguinte fiquei sabendo que ela tinha sido assassinada pelo taxista Jacinto. Malditos trocados.