Pular para o conteúdo principal

Cosmopolitan

Fortes características de um deja vú se formam em um momento de frio. Penso se a imagem não é apenas mais uma presenciada em um passado perfeito, mas não, os detalhes são novos e ricos no exagero do novo. A fumaça sobe de um cigarro preso no cinzeiro que descansa no balcão do bar. Um jazz carregado de paixão e ódio escapa das caixas de som. Miles Davis. A dona ao meu lado veste um longo azul escuro com uma abertura nas costas que revela uma bela tatuagem de dragão. Diria que ficou meio vulgar, porém, com presença e destaque. Um martini é entortado pela boca de finos lábios cobertos de batom claro. Esboço uma tentativa de sorriso disfarçado de charme e arranco um gesto de gratidão. Ela deve ter pensado: um outro otário perdedor se afogando em álcool para esquecer a realidade.

O ambiente é bem eclético. Vários tipos se arrastam enquanto outros voam. Um rapaz jovial não consegue parar em um único lugar. Com uma jaqueta da Gap procura a melhor opção para uma foda. Pelo jeito não está apenas procurando mulheres. Miles Davis dá licença e Beth Gibbons invade os ouvidos dos que admiram o Portishead. Agridoce com eletrônico. Sempre achei "Strangers" uma das melhores canções já compostas no mundinho criativo da década de 1990. E o meu cigarro continua morrendo no cinzeiro. Preciso parar de fumar. Meu médico que aconselhou. Como sempre tive meu lado Bukowski, renego o diagnóstico.

Olho novamente para o bailar de dedos que a moça insiste em dançar pela borda do copo calibrado de martini. Imagino como seria feliz ser engolido pelos tais. Devagar. Voraz. Tenaz. Deliciosamente liso, raspando um pouco pelas laterais das almofadas pintadas. Batom que contém chumbo na composição dá cancêr, li certa vez em uma dessas revistas femininas. Marie Claire? Não lembro. Entretanto, parece que era apenas um boato, uma lenda urbana. Informação fútil só para descontrair. Se chumbo tiver, deve ser nas entranhas da dona. Muitas mostram pelo olhar a ardência do contato, da pele. Mudo o pensamento e me concentro na Beth Gibbons. Pelo jeito preferiram deixar rolando o Roseland NYC Live na íntegra. Estamos agora em "All Mine". Digo, acabou. Segue com "Mysterons".

Depois de muito admirar, não o álbum dos britânicos, mas as características fortes do deja vú ao meu lado, ameaço uma retirada sem nada mencionar. Levanto. Meu cigarro já está morto. Deixo a gorjeta. Coloco a carteira no bolso. E ouço:

- Já vai? Encarou tanto que cheguei a pensar que poderia passar um pouco de câncer por meio dos lábios. Sabia que batom com chumbo dá câncer?

- Você leu na Marie Claire? - Pergunto.

- Não, na Cosmopolitan.

Postagens mais visitadas deste blog

Acertos maus

Contato ausente Em pele quente Que arde dor De passado beijo Desfeito antes Recriado oposto Delicado gosto. Mentira exposta Na boca torta De beleza oca E fala morta Que acabou O amor incerto De brigas boas, Acertos maus, Vontades outras, Saudades poucas. Ainda há bem Outrora ruim Um desejo em mim De tragar o fim Engolindo gim.
Para o amor, o bastar O exagero, o gostar A carícia, o acordar O café, o sorrir A voz, sussurrar O beijo, o selo O abraço, o continuar lsH
Patti Smith me dá razão nesta madrugada. Tentei ser, pelo menos, amigável, mas confesso que fui um pouco falso, torcendo para que não aconteça o que você tanto quer. Acendi meu cigarro e fiquei pensando: para que ser assim? Vou ganhar alguma coisa? Não. De maneira alguma. Talvez eu esteja cansado de ser o bom das histórias. Um grande amigo meu, certa vez, me disse: Léo, o problema é que você é muito bonzinho. Não é exatamente isso que as pessoas as quais nos apaixonamos querem? No meu caso, parece que não.  Por isso que agora a Patti me dá razão, principalmente por causa dos versos: "i was thinking about what a friend had said, i was hoping it was a lie". Sim, eu me sinto culpado de ser o bom da história. Se isso acontece, se de fato sou assim, por que sou chutado? Pois é... Think about.