Pular para o conteúdo principal

O acordeonista



A paz, apenas uma, no singular mesmo, simples e sincera, ele queria. Envolto na névoa, abraçado ao seu acordeom, pensava como o último ano tinha sido belo, com o amor pleno, o cantar sereno e as melodias encantadoras. Mas o acaso, primo-irmão do destino, cunhado do agora, despertou-se de um sono maluco, em que a cocaína lhe deu frenesi e vontade de acordar para causar o tumulto. O músico, que havia se acostumado com a vida do hoje, teve junto ao acaso uma briga dilacerante, onde o principal afetado foi o cérebro, que ganhou uma linda síndrome que retirou do lugar os seus pensamentos. Ele só queria seguir tranquilo pela composição perfeita a qual acreditava ter realizado. Enganou-se.
Certa vez, ao se apresentar numa comunidade do interior de uma cidade pequenina, presenciou a ladainha de um fazendeiro que tinha a sensibilidade tremenda de causar intrigas. Esse senhor, que apresentava-se honesto, tinha escondido nos olhos uma maldade voraz, como o raiar de uma segunda-feira infernal. Não se sabe ao certo, porém, dizendo-se gostar do acordeonista, o convidou para uma festa em sua propriedade. Ao chegar lá, os convidados o olharam estranhamente. Mal sabia que o senhor tinha lhe pregado uma desgraça. Espalhou para todos que o artista tinha fama de mentiroso, que enganava as pessoas porque havia nascido com a ganância no corpo e que, apesar das suas lindas músicas, não passava de um ridículo aproveitador.
Mesmo com a boca e os dedos trêmulos, pôs-se a cantar e a tocar uma canção que dizia mais ou menos assim: "Mentiras pingando da sua boca como sujeira / Mentiras em cada passo que você dá / Mentiras, sussurrou em muitos ouvidos".
Todos naquele momento perceberam que tudo estava estranho e começaram a jogar seus copos de vinho em direção ao palco. Um vidro acertou seu olho, cujo sangue tingiu sua camisa de seda, presenteada pela sua mãe. Calmamente, desplugou seu instrumento e berrou ao microfone: "O poder da influência se trata de ganância quando não há uma ferramenta sincera para se construir o belo. O entendimento de vocês, em abraçar apenas um lado, cegos pelas posses e pelo poder desse senhor fazendeiro, não dá a ninguém o direito de julgar". Mais copos foram jogados.
Hoje, ele apenas queria ser um canário do reino, mas teve sua reputação calada gratuitamente, sem entender o motivo. E, após uma época de maravilhas colhidas, enxerga nos sonhos os olhos debochados do fazendeiro que, simplesmente, sentia inveja de não ter nascido com o dom musical, tão pouco, com a voz encantadoramente rouca do acordeonista.

Postagens mais visitadas deste blog

um gole de derrota nesse asco. um casco entre as unhas, colabora. o copo quebrado acumula pó e o nó na garganta é charme. a calma quer explodir em caos para um fundo em furo se enfurecer na poética dissonante de um crescente anoitecer. mencionado antes, agora exposto "o mundo está duas doses abaixo" por mais que às vezes, acima, recria o oposto da colocação. então, não tenha medo hora ou cedo o coração padece e merece um aproveitar que tenha como fim o sorrir. (mas não acontece).

Fim

  É tanto vazio nesse espaço cheio É tanto desamor nesse amor É tanta sofrência nessa alegria É tanta felicidade nessa tristeza É tanto amigo nessa solidão É tanta falsidade nessa realidade É tanta falta nessa plenitude É tanto concreto nesse verde É tanta abstinência nessa bebida É tanto início nesse fim.

Oportuno

Os dias frenéticos me interropem os prazeres. Os pequenos detalhes seguem despercebidos, Nem a velha canção funciona e não emociona. As horas estão lotadas neste pensamento aflito. Eu procuro um grito, mas o perco no vácuo. Faço do coração apenas um pulso de sangue E não vejo que de fato ele quer uma percepção. Eu passo um risco no instante que quero. Preciso de calma mesmo querendo o agito. Fico aos nervos quando necessito de paz. Recorro à memória e me sinto traindo. Nos segundos falecidos eu vejo a derrota E amplio com dicotomia, pois não é a verdade. Trato o acaso como um passado empoeirado E reflito neste pouco que nada está atrasado. Tudo se trata de período contido Que poderá ser resgatado em um dia oportuno.