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Pessoa perdida procura - Capítulo 1


Não lembro ao certo como aconteceu. Eu estava perdido em uma estrada que ligava Coroados a Guaratuba. O problema era que eu nunca recordava como tinha chegado àquele lugar. Era como se eu estivesse dormido na minha cama e acordado na estrada. O pior era que eu não tinha nenhuma pista de como eu havia chegado lá. Eu tinha apenas um relógio de pulso de cor cinza com o ponteiro dos segundos quebrado e uma mochila com alguns CDs, um disk-man, uma garrafa de Jack Daniels, uns maços de cigarro, uma edição do "Misto-quente", do Charles Bucowski e uma agenda. Eu estava usando uma calça jeans azul clara, tênis Adidas, uma camiseta rasgada com os dizeres "Lover Loser" logo abaixo de um desenho do Presto, um dos personagens da Caverna do Dragão. Se não me engano eu estava com um colar de sementes de alguma coisa e uma forte dor na coxa direita, o que me fazia mancar.
Caminhei por alguns quilômetros - dois, para ser exato - e encontrei uma sombra para descansar. Eu estava com uma sede absurda. Minha língua fervia devido ao calor do dia. Sim, me lembro de mais um detalhe, era dia e o meu relógio de cor cinza marcava 16h32. Encostei-me em uma dessas placas que mostram o limite de velocidade de uma rodovia. A estrada estava com o movimento fraco, pouquissímos carros tinham passado por mim. Talvez fosse período de baixa temporada. Não lembro. Tenho a impressão de que era inverno, mesmo eu não estando com frio.
Depois de alguns momentos tentando me ajeitar sentado no chão coberto por uma fina vegetação seca, abro minha mochila e pego o litro de Jack, meu melhor amigo naquela situação. Depois de três goles virados, exploro um pouco mais a companheira bolsa fabricada com um material sintético que não consegui descobrir qual era. A segunda coisa que a minha mão alcançou foi um CD. Eu lembro que adorava aquele som. A foto da capa mostrava uma mulher, na beira da estrada, com o vestido um pouco esvoaçante. Seus cabelos eram ruivos ou algo parecido com isso. Tori Amos era o nome da artista, compositora jucunda de lindos traços labiais, de voz afiada que cortava qualquer coração corrompido. Minha faixa predileta deveria ser a número 7. Adoro as faixas com esse número de qualquer álbum, mesmo que as canções sejam ruins. Eu lembro que no álbum do Los Hermanos, aquele em tom opaco, a faixa 7 se chama "Sentimental", adoração absoluta de qualquer fã hermanico. Já a faixa 7 do disco "V", da Legião Urbana é "Vento no Litoral", minha favorita. Sem falar do ótimo "Siamese Dream", do Smashing Pumpkins. A faixa 7 é "Soma". Perfeita.
Fiquei admirando por alguns minutos aquela capa, imaginando como a foto foi tirada, como era a cara do fotógrafo que registrou o momento e como a Tori Amos estava considerando aquela sessão fotográfica. Muitos artistas do mundo pop não suportam esses momentos de pós-produção de um trabalho fonográfico. Vários abandonaram sessões fotográficas e foram encher a cara no bar mais próximo. Mas, também existem aqueles que amam fazer isso, acompanhar o processo de pós-produção, dar palpite na composição gráfica do encarte, administrar a carreira de perto. A Marisa Monte faz isso muito bem. Naquele momento, com aquele sol queimando o meu rosto, me causando mais sede, eu apenas pensava que a Tori Amos deveria estar adorando aquele momento. Eu poderia estar errado. Ela poderia estar apenas se fazendo, interpretando, mostrando uma das várias personagens presentes em suas canções. Eu só conseguia ficar pensando nisso, tragando um cigarro e bebendo o Jack.
Parei de pensar na Tori quando uma fisgada na coxa direita interrompeu o meu momento de imaginação profunda. Não conseguia lembrar como eu estava naquela estrada, com a coxa fodida e apenas alguns objetos na mochila. Respirei fundo e olhei novamente o meu rélógio. 17h05. Fazia 43 minutos que eu estava naquela situação. Parecia que eu tinha acabado de nascer e completava 43 minutos de vida. Parecia que eu tinha nascido grande, com uns 20 anos já, com um conhecimento musical interessante, fumante, bebum e com a coxa machucada. Não recordava o passado.
Levantei do chão e resolvi continuar a caminhada rumo ao lugar nenhum. Aos poucos as lembranças foram surgindo em forma de flashbacks. Eu sabia que estava entre Coroados e Guaratuba, litoral do Paraná. De certa forma, eu não estava perdido. Segui em direção à Guaratuba, com a coxa doendo cada vez mais. Tentei várias vezes uma carona, mas fui ignorado em todas as tentativas. E olha que eu não estava com um aspecto sujo, não estava com cara de bêbado, não estava fedendo e nem parecia um mendigo. As pessoas de hoje não confiam em mais ninguém.
Após cerca de 50 minutos de caminhada inundada por pensamentos que procuravam pela memória recordações ou pistas para que eu pudesse tomar alguma atitude, chego em Guaratuba. Ao longe eu ouvia as ondas morrendo na praia. Fui recebido pela brisa marítima que jogou um pouco de vontade no corpo. E a coxa incomodando. Dores e pontadas constantes. Minha coxa não apresentava nenhum sinal de pancada e sangramento. A olhos nus estava perfeita. Mas doía muito.
Segui quase me arrastando. Avistei uma farmácia e consegui com esforço estratosférico chegar até ela. Um rapaz moreno de pele queimada, olhos castanhos, cabelo curto e cílios grandes me atendeu. Tinha uma cara de nativo e surfista de final de expediente. Rogério era o nome dele, estava no crachá. Expliquei a ele a minha situação, porém, o moço não se mostrou nem um pouco comovido e disse que iria me encaminhar à farmacêutica para ver se ela poderia me ajudar quanto às dores na coxa.
Entrei na sala da farmacêutica e um par de lindas bolas negras me receberam. Rogério me apresentou à Gisele, responsável pelo lugar. Não pude conter a minha admiração. Os olhos da mulher eram misteriosos, profundos, encantadores, perfeitos e hipnotizantes. Após alguns segundos encarando-os, escuto uma voz vinda de longe:
- Você está bem? - Percebi que o assunto era comigo e balancei a cabeça afirmando que sim. Em seguida veio outra pergunta:
- Tem certeza? Então por que você está aqui? - Na verdade foram duas perguntas dentro de uma ou seria uma dentro de duas? Tanto faz. Foi aí que eu expliquei sobre a minha dor na coxa direita que estava simplesmente tomando conta de toda a minha perna. Gisele, sem fazer cerimônias, pede para que eu tire a calça. Eu me fiz de desentendido e exclamei:
- O quê?
- Oras, tudo bem que não sou ortopedista, mas tenho um mínimo de conhecimento para saber o que você tem na coxa, além de carne, músculos, sangue e ossos. Mas, para que eu possa verificar ao certo, preciso examinar a sua coxa, portanto, tire a calça. - Soltei um lindo sorriso amarelo e percebi que o tal do Rogério ainda estava na porta da sala da farmacêutica. Olhei para ele com cara de descontente. Ele saiu.
Abaixei a calça jeans sem marca definida. Percebi que estava sem a cueca. E escuto:
- Você prefere deixar o bicho solto pelo jeito. - Putz! Penso eu. Mas como eu iria me lembrar daquele detalhe se nem sabia como tinha parado ali. Tudo bem, totalmente sem jeito expliquei onde era a dor.
- Muito estranho, você não tem nenhum sinal de hematoma, nem ferida, nem sangramento. De repente você pode estar alguma distensão muscular. Vou passar um medicamento para você e sugiro que você procure algum posto de saúde. Tem um bem aqui perto, se quiser posso levá-lo. - Adorei ouvir aquilo, uma pessoa querendo me ajudar. Foi então que ela disse:
- Desculpe, isso vai parecer muito clichê, mas tenho a impressão de que já vi você em algum lugar. -


(A história continua nos próximos posts).


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