A alma está meio grunge. Sei lá se acordou assim. Não lembro. O dia anterior foi de destruição, quando decretei o meu corpo em estado de calamidade pública. Agora, neste momento, se encontra fumando um cigarro, dedilhando uma guitarra desafinada e grunhidos milimetricamente desajeitados.
O dia clareia. Um pássaro pousa na fiação elétrica enquanto o sol parece dizer, solitariamente: mais um dia vagabundo está surgindo. Aproveito o embalo e pego minha camisa xadrez de flanela que estava no criado mudo. Ela fede a maconha, incenso de Flor de Lótus e falsificação de Hugo Boss. Como não lembro se dormi, até que estou contente.
Deixo de lado a guitarra e sigo até a cozinha preparar um café. Acendo o fogão com um Zippo que tem um adesivo do Pato Donald. Estranhamente, parece que ele está sorrindo para mim enquanto derramo pó de café no azulejo cinza. A água já fervendo e ouço: Bom dia! Caralho, tinha mais alguém neste apartamento? Eu trouxe alguém? Dormi com quem? Por que não lembro? Não usei nada forte na noite passada. Um cidadão, só de cueca boxer, se encosta-se à porta da cozinha-lavanderia e diz: Daí camarada, como está? – Fico sem reação. Não sou dessas pessoas que se perde quando algo inusitado acontece, mas naquele momento eu me permiti ficar totalmente perdido. – Olha, a princípio estou bem, mas o que faz aqui em casa? – Foi a única frase que consegui esboçar enquanto a água já estava fervendo. – Sou o cara que você conheceu na noite anterior, bem quando a banda da casa estava tocando “Plateau”, do Meat Puppets, não lembra? – É claro que eu não lembro, nem lembrei de desligar o fogo. Mais intrigado, solto: Hey, a gente ficou, transamos ou algo do tipo? – Ele olha no fundo da cozinha, visualizando um quadro que tenho do Bowie e responde: Alguma dúvida? – Odeio quando alguém me responde algo com outra pergunta. Sinto-me a pessoa mais burra de toda a rua. Aliás, qual é mesmo o nome da minha rua?
Passo o café, extremamente confuso. Eu estou confuso, o café não foi passado confusamente, esse eu consegui fazer direitinho. Sou perito em passar café, antes que eu esqueça de mencionar a minha única qualidade. Convido o cidadão para se sentar e degustar um pãozinho de três dias. Ele sorri e fala: Não lembra meu nome? – Com o sorriso mais amarelo que as primeiras páginas da Veja, respondo: Não, desculpas imensas, não tenho a mínima ideia de quem você seja. Cabisbaixo, revela: Cara, eu sou você 20 anos mais novo! Como não consegue se reconhecer? Suas memórias estão tão apagadas de tanto ácido que não consegue se identificar? Que não consegue nem ao menos reconhecer certos traços, como essa cicatriz no canto do olho direito quando você e seu irmão caíram de uma árvore, ou quando você fez essa tatuagem no braço com o nome de um amor que morreu em Curitiba? Como assim camarada?
Ao ouvir aqueles sermões, tão rápidos quanto os do Frei Policarpo, bebi meu café, comi meu pão borrachudo, acendi um cigarro e, calmamente, falei: Que porra é essa? Agora estou tendo alucinações baratas para confortar os meus 48 anos? Tudo bem que não fiz nada que preste nesta vida. Plantei uma árvore pelo menos. Não tentei ter filhos e não tenho habilidades para ser escritor. O que eu sei fazer é passar café.
Uma luz branca surge repentinamente em meus olhos. De repente o cara que se dizia eu sumiu, não sinto mais gosto de café em minha boca e estou em minha cama, abraçado a uma camisa xadrez, que cheira Hugo Boss, canela e um pouco de cigarro. Naquele momento, de manhã, sem ressaca alguma, penso, está na hora de por marginalidade nessa vida novamente. Nem que seja grunge.