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Beijo


Um beijo confuso. Molhado. Quente. Ardente. Propositalmente acontecido, acompanhado de um roçar lento de narizes. Situação orgástica. O lábio deslizava pelo queixo e o rosto áspero procurava o carinho da mão. Os olhos úmidos cruzavam visões com ângulos fechados. Os dedos tinham cheiro de fumaça, de uísque, de grama cortada, de sangue. As unhas borradas eram escárnios, de uma rudeza completamente bela. A maquiagem torta estava apanhada. Havia uma escuridão nos cílios que causava uma vontade doentia de iluminá-los. A boca era de um desenho estranho, quase cubista, mas que se encaixava perfeitamente. O toque lento por vezes ficava afoito. A respiração lenta acertava os póros que rebatiam novamente o ar. A pele morena ganhava proporções de pintura perfeita enquanto as luzes dos carros refletiam na tez.
Após o beijo que pareceu um canto dissonante de elfos clamando alegria, o mundo começou a ser um lugar bonito. A brisa da noite tinha aroma de baunilha. O silêncio se fez presente. Apenas um murmúrio singelo quebrou e acompanhou a sinfonia de motores de carros, buzinas, tiros, crianças gritando, putas no cio, rapazes expostos, policiais observando, meninas cheirando, garotos morrendo e cachorros fodendo.
Um cigarro foi aceso. A fumaça penetrou no ar denso. A outra mão procurou consolo e foi aceita pela ulterior que vazia também pedia aconchego. Novamente um outro beijo aconteceu. Ainda mais tenso, mais abstruso. Difícil entender. As bocas pareciam ímãs. Um sabor cáustico era sentido e os corpos encostaram-se ao poste da esquina, fetidamente perfeito. O local era de uma sujeira bem articulada, com traços embriagados e decoração pesadamente negra, como uma película de Marcelo Piñeyro.
Amantes torpes se deixaram entregar em um momento. Não foi efêmero, nem trivial. Havia constância. Cada qual atravessou a rua, sem palavras, sem despedida. Seguiram os seus caminhos, este sim, planejado pelo horário e pelos clientes que esperavam. Ela entrou em um carro cinza. A outra ficou utilizando o poste como apoio. Ambas sumiram quando a névoa subiu, mas o beijo se tornou eterno nos instantes que as solitárias sentiram uma razão de existência.

L.S. Handa

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um gole de derrota nesse asco. um casco entre as unhas, colabora. o copo quebrado acumula pó e o nó na garganta é charme. a calma quer explodir em caos para um fundo em furo se enfurecer na poética dissonante de um crescente anoitecer. mencionado antes, agora exposto "o mundo está duas doses abaixo" por mais que às vezes, acima, recria o oposto da colocação. então, não tenha medo hora ou cedo o coração padece e merece um aproveitar que tenha como fim o sorrir. (mas não acontece).

Fim

  É tanto vazio nesse espaço cheio É tanto desamor nesse amor É tanta sofrência nessa alegria É tanta felicidade nessa tristeza É tanto amigo nessa solidão É tanta falsidade nessa realidade É tanta falta nessa plenitude É tanto concreto nesse verde É tanta abstinência nessa bebida É tanto início nesse fim.

Oportuno

Os dias frenéticos me interropem os prazeres. Os pequenos detalhes seguem despercebidos, Nem a velha canção funciona e não emociona. As horas estão lotadas neste pensamento aflito. Eu procuro um grito, mas o perco no vácuo. Faço do coração apenas um pulso de sangue E não vejo que de fato ele quer uma percepção. Eu passo um risco no instante que quero. Preciso de calma mesmo querendo o agito. Fico aos nervos quando necessito de paz. Recorro à memória e me sinto traindo. Nos segundos falecidos eu vejo a derrota E amplio com dicotomia, pois não é a verdade. Trato o acaso como um passado empoeirado E reflito neste pouco que nada está atrasado. Tudo se trata de período contido Que poderá ser resgatado em um dia oportuno.