Jogos de amar. Um cordão desamarrado, um livro aberto, uma lágrima suicida. Alguém ajuda a moça da cicatriz amarrar o All Star. Depois, lê o livro para ela. A lágrima foi seca pela própria, já que estava sozinha no dia em que ouviu Joni Mitchell. Era cega. Não nasceu assim, culpa de um problema genético herdado de seu pai. Ele falaceu quando a moça ainda era criança. Dez anos. Mas ela não o culpa, pelo contrário, agradece. A deficiência lhe proporcionou uma audição extraordinária. Característica que ela utiliza com maestria na condução do violino. Não gosta dos clássicos, prefere o pop. Belle and Sebastian.
Jogos de amar. Ela estava passeando com o seu cão, o Paçoca, pelo parque central da cidade. Um lugar repleto de árvores que tem um rio cortando a extensão do local. Era outono. As folhas faziam um carpete nas trilhas, muitas delas ainda úmidas, como se estivessem sido salpicadas pela deusa da estação. Ela não percebeu, mas seu cadarço desatou. O cachorro parou. Ela não entendeu. Por mais que Paçoca soubesse que havia algo errado, ele não foi ensinado a avisar quando um cadarço se desamarrava. O cão sentou e ficou chorando. A moça, preocupada, começou a conversar com o cachorro que, aflito, não sabia o que fazer. Muito burro. Coitado.
Onze minutos se passaram. A moça continuava a não compreender. Um belo rapaz calçando o novo tênis produzido pela indústria cultural que tem como garoto propaganda aquele jogador inglês parou de correr e sorriu:
- Linda, o seu tênis está desamarrado.
- Ah, então era isso. Obrigado moço, eu não vi. Sou cega.
- Imagina, foi só desatenção.
- Não moço, você não entendeu. Sou cega mesmo. E, acredite, dos dois olhos.
Ela não se segurou e deu uma gargalhada. O cara acompanhou a piada e também riu. O cão ficou tão aliviado que chegou a urinar, como se um estresse tivesse acabado de falecer entre um céu de brigadeiro com confetes e serpentinas, com fogos de artifícios e luzes coloridas. Tadinho do Paçoca.
O cara e a moça ficaram conversando, caminhando pela trilha de folhas úmidas. Paçoca parecia sorrir, ele gostou do rapaz. Abanava o rabo como se estivesse pronto para decolar no tal céu de brigadeiro com confetes e serpertinas pelo ar, com fogos de artifícios e luzes coloridas. Repetindo. Tadinho do Paçoca, os cachorros se contentam com tão pouco.
Depois de conhecerem um pouco mais sobre a vida de cada, o quase novo casal procura um banco para sentar. A moça deixa um livro cair da sua bolsa. "O Apanhador No Campo de Centeio". A versão era em braile. Lógico.
- Também gosto deste livro. Eu me identifico com o personagem. Comentou o rapaz.
- Eu ganhei o livro ontem, ainda não comecei a ler, mas os meus próximos sempre falam muito bem dele, da história e tudo o mais. Ela odiava quando encerrava as frases com "tudo o mais".
- Bacana, aliás, como é o seu nome?
- Clara, e o seu?
- Dario, como aquele jogador de futebol.
- Desculpe, sou ignorante quanto a fatos históricos futebolísticos.
- Tudo bem, nem eu sei ao certo quem foi ele. Meu pai era um fanático pelo futebol, mas eu neguei as origens, para o desgosto dele.
- Eu quase não lembro do meu pai. Ele morreu ainda quando eu era criança. Também tinha problema na visão, acho que na córnea, sei lá. Tenho apenas uma vaga lembrança dele me balançando no quintal em um dia de inverno murmurando uma canção da Joni Mitchell.
- Sou ignorante musicalmente, não conheço nada da cantora.
- Deveria, claro, se quiser conhecer. A mulher é fantástica. É uma poetisa. Ou seria poeta? Nunca sei o termo correto.
- Acho que poetisa é o certo.
- Deve ser. Enfim, a Joni me salvou muitas vezes, adoro o álbum "Blue".
- Vou procurar algo dela na internet.
- Ah não, tem comprar em CD. O MP3 deixa as canções tão... mecânicas, frias, absurdamente sem volumes. Parece que as variações não existem. O vocal fica sempre estranho. Desculpe, devo estar te enchendo com essa papo romântico e revolucionário contra o MP3. É que meu ouvido é mais sensível do que as pessoas que enxergam.
- Tudo bem, não está me enchendo. Tenho um segredo, cortanto o assunto. Eu sei ler em braile.
- Ah é? Nossa, estou admirada.
Ele pegou o livro das mãos de Clara e deslizou com os dedos pelas frases do autor JD Salinger. Ela quase teve um orgasmo. Tudo bem, mero exagero de linguagem, mas a moça ficou mais encantada. Imaginou-se trocando beijos com o rapaz, jantares a luz de velas, ambos dançando coladinhos ao som de "River", conversando casos e besteiras, descobrindo as imperfeições da pele de cada um, as pintas, as cicatrizes, as feridas e as manchas. Tudo no toque, o olhar através dos dedos.
- Você está prestando atenção no que estou lendo?
- Desculpe Dario, viajei. Viajei legal. Desculpe, mas que horas são?
- 17h34.
- Nossa, desculpe, mas preciso ir. Por favor, qual é o seu telefone, vamos nos encontrar em outra hora, tomar um café, beber um vinho, sei lá.
- Claro, vou anotar... vou anotar aonde?
- Pode ser na contracapa do livro, eu tenho uma caneta na minha bolsa.
Anotado o telefone, Clara foi sorrindo ao lado de Paçoca que, por sinal, estava morrendo de fome. Isso ele sabia avisar. Chegava a ser escandaloso. Alardeava em uivos capazes de romper a barreira sonora do agradável. Era um desesperado. 17h30 era o horário dele comer e já se passavam quatro minutos. Sorte que a casa de Clara era perto do parque.
Depois de dar comida ao cachorro, ela percebeu: como iria ver o telefone anotado se era cega? E como Dario não percebeu isso? E Paçoca não sabia ler. Que cão inútil. Clara percebeu o cachorro que soltou um daqueles gemidos tão peculiares que fazem esses animais os seres mais bacanas do universo. Enfim, pensou, é para isso que servem os vizinhos.
Dois dias se passaram e Clara resolveu ligar. Uma voz cansada atendeu o telefone:
- Quem é?
- Oi, é a Clara, eu queria falar com o Dario. Um soluço foi ouvido. Clara sentiu, então, que lágrimas estavam se suicidando do outro lado da linha.
- Moça, o Dario faleceu a dois dias.
- O quê? Ela não acreditou, não conseguia imaginar o praticamente homem da sua vida ter ido, quem sabe, para o tal céu de brigadeiro com confetes e serpertinas pelo ar, com fogos de artifícios e luzes coloridas imaginadas pelo Paçoca que, por sinal, deu um outro daqueles gemidos no momento do "o quê?".
- Sim, faleceu.
- Como assim? Como? Meu Deus...
- Ele estava voltando para casa depois de uma de suas caminhadas e um rapaz o abordou. Pediu os tênis, Dario reagiu e levou uma facada... A voz do outro lado da linha não conseguiu completar a frase. O pranto se tornou desespero. O telefone foi desligado.
Clara, sem saber o que fazer, apenas colocou o CD da Joni Mitchell no som, pôs a canção "River", chamou o Paçoca, o abraçou e chorou, chorou como se nunca tivesse conhecido a potência de uma lágrima saindo pelos canais dos olhos. Paçoca se levantou, saindo dos braços de Clara e pegou com a boca a edição em braile do O Apanhador No Campo de Centeio" e levou até ela. Sem entender, virado exatamente na contra-capa, Clara leu com os dedos a última frase, na verdade, um extra, não está na versão original do escrito: "O homem imaturo é aquele que quer morrer gloriosamente por uma causa. O maduro se contenta em viver humildemente por ela".
Fim.