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O ponto

Era um ponto negro, pequeno, localizado no centro do peito. Às vezes coçava, chegava até arder. Não foi dada importância desde que surgiu. Parecia como um aglomerado de melanócitos, algo comum, de acordo com os dermatologistas. Com o tempo foi crescendo. Na adolescência, mais precisamente, ficou do tamanho de uma tampinha de Fanta. Começou a incomodar, porque doía: pontadas agudas que pareciam como a sensação de palitos de gelo adentrando a carne. Certas vezes, porém, o pontomudava de cor, deixando a negritude de lado e assumindo um tom azulado, como um céu de inverno pela manhã, depois que a geada se dissipa com os primeiros raios solares. Naqueles dias, a cabeça reagia de forma estranha, algo como um misto de euforia e felicidade, sentimentos não tão comuns para a época.
Mas, depois de alguns dias, voltava a ficar escuro, como uma obra do Caravaggio sem a réstia da luz presente em seus quadros. Foi então que apareceu a letra M dentro do ponto, de melancolia, de melodrama, de merda, de metástase, de mal, de murmúrio, de maldição.
A vida seguiu como deveria, com períodos de tristeza, descontração, alegria, fraqueza, desamor, punições e lágrimas. E o ponto estava maior, agora encobrindo todo o peito. Tinha dias que ficava cinza, atingindo um Pantone 8785 Iron Horse. Quando assim estava, o Nebraska do Bruce Springsteen se tornava um disco feliz, fazia de Landslide do Fleetwood Mac uma canção de esperança e do filme Ladrões de Bicicleta, de Vittorio de Sica, um tratado sobre a alegria. Eram nesses períodos que a circunferência sombria aproveitava para se alimentar de coisas que a ajudassem a ter uma coloração mais quente, quiçá, um amarelado ou alaranjado. No entanto, o preto puro sempre voltava e, quando retornava, era com uma força de 20 elefantes selvagens em busca do cemitério de seus antepassados que entoaram barridos ao longo dos séculos.
Eis, então, que aquilo que não foi levado a sério, tomou conta do corpo todo e ganhou a força de um monstro cósmico, capaz de sugar para o seu interior a cor mais forte, a luz mais intensa. E, desde então, o ponto negro com um M no meio se isolou para abençoar a tristeza, sua prima de primeiro grau, que seguiu a sobrevoar os corpos desprevenidos, pronta para plantar novos pontinhos escuros em peitos abertos.
lsH

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Acertos maus

Contato ausente Em pele quente Que arde dor De passado beijo Desfeito antes Recriado oposto Delicado gosto. Mentira exposta Na boca torta De beleza oca E fala morta Que acabou O amor incerto De brigas boas, Acertos maus, Vontades outras, Saudades poucas. Ainda há bem Outrora ruim Um desejo em mim De tragar o fim Engolindo gim.
Para o amor, o bastar O exagero, o gostar A carícia, o acordar O café, o sorrir A voz, sussurrar O beijo, o selo O abraço, o continuar lsH
Patti Smith me dá razão nesta madrugada. Tentei ser, pelo menos, amigável, mas confesso que fui um pouco falso, torcendo para que não aconteça o que você tanto quer. Acendi meu cigarro e fiquei pensando: para que ser assim? Vou ganhar alguma coisa? Não. De maneira alguma. Talvez eu esteja cansado de ser o bom das histórias. Um grande amigo meu, certa vez, me disse: Léo, o problema é que você é muito bonzinho. Não é exatamente isso que as pessoas as quais nos apaixonamos querem? No meu caso, parece que não.  Por isso que agora a Patti me dá razão, principalmente por causa dos versos: "i was thinking about what a friend had said, i was hoping it was a lie". Sim, eu me sinto culpado de ser o bom da história. Se isso acontece, se de fato sou assim, por que sou chutado? Pois é... Think about.