Sem o cineasta espanhol Pedro Almodóvar, o ficcional não seria tão verdadeiramente pitoresco
Parafraseando uma clássica frase do filósofo Nietzsche, o cinema sem as películas de Pedro Almodóvar seria um erro. O exagero é necessário, afinal, não se trata de um normal, mas da pessoa que consegue tirar graça das tragédias. O diretor espanhol possui mais peculiaridade do que a invasão dos Estados Unidos no Iraque, do que a derrota da seleção brasileira na Copa de 1998 e do que a morte de Getúlio Vargas. Ele é praticamente a melhor tradução da idiossincrasia. As suas mulheres bizarras são sexys, os seus personagens são afavelmente caricatos, seus roteiros são miscelâneas de absurdos deliciosos e suas metáforas visuais são deleites antropofágicos para os puristas.
A extensa filmografia de Almodóvar iniciou em 1974, quando dirigiu dois curtas-metragens, “Film Político” e “Dos Putas, A Historia de Amor que Termina en Boda”. Herdeiro direto da linguagem pitoresco-criativa do diretor Luiz Buñuel, influência soberana nos arquétipos almodovarianos, o criador de figuras berrantes e cativantes nasceu pobre em Calzada de Calatrava e ajudava a família em um comércio de objetos de segunda mão. Desde cedo tinha uma única certeza: trabalhar com arte.
No início da década de 1970, mudou-se para Madri, cidade-fetiche mostrada em vários de seus filmes. Estudou cinema na Escuela Oficial de Cine, mas não concluiu o curso devido ao governo do ditador Francisco Franco. Na infância, recebeu ensino religioso. Ganhou traumas. Perdeu a fé. Foi abusado. Resquícios daquelas tristes memórias ganharam físico no longa-metragem “A Má Educação” (2002), um quase fato real baseado em sua experiência em um colégio administrado pela igreja católica, instituição a qual ama ridicularizar em seus compêndios de escárnio e exacerbações. Em “Maus Hábitos” (1983), Almodóvar destilou o seu veneno no roteiro do filme que apresenta um surreal convento habitado por freiras lésbicas e taradas, tudo pintado nas infindáveis cores fortes que cospe em suas direções fotográficas. Afinal, só mesmo o espanhol consegue combinar o gritante vermelho de batons com paredes verde limão, sapatos rosa com cabelos amarelos e vestidos de poá azul com música do Caetano Veloso.
Sem Almodóvar o cinema mundial não teria o preconceito tratado de maneira original. Homossexual assumido, a polêmica pode ser considerada um adjetivo em seus longas-metragens. Em “Labirinto das Paixões” (1982), o autor escreveu um inusitado roteiro onde o filho gay de um imperador se envolve amorosamente com um terrorista que, por sua vez, tem um romance com uma ninfomaníaca. Ojeriza total aos padrões.
Essa característica controvertida já vinha de outros tempos. Antes de se aventurar atrás das câmeras, ele escreveu uma novela em histórias em quadrinhos chamada “Fogo nas Entranhas” e desenvolveu uma fotonovela pornô, “Toda Tuya”. O passado só foi válvula de escape para as suas futuras doidices cinematográficas.
Alma feminina
No final da década de 1980, Almodóvar seguiu uma direção de lirismo marginal mais suavizado, contudo, sem perder os alfinetes palavreados e a estética visual de personagens estróinas. Seu interesse se voltou às mulheres. A sutil mudança lhe rendeu uma indicação ao Oscar na categoria de Melhor Filme Estrangeiro por “Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos” (1988).
As complexas facetas femininas também davam as caras em seus longas seguintes, “Ata-me” (1990), “De Salto Alto” (1991), “Kika” (1993) e “A Flor do Meu Segredo” (1995). Mas a sua fama de relator urbano do dito sexo frágil nada seria sem a contribuição que conseguiu fazer com atrizes tão talentosas como Carmen Maura (sua parceira artística mais fiel), Cecilia Roth, Marisa Paredes, Victoria Abril, Rossy de Palma e Penélope Cruz. A última, inclusive, só se tornou o que é hoje graças ao apadrinhamento de Almodóvar. Suas primeiras atuações eram dignas de teatro feito em jardim da infância. Depois de dirigida pelo espanhol, aprendeu os mecanismos da profissão, faturando prêmios ao redor do mundo, como o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante por “Vicky Cristina Barcelona” (2008).
O universo feminino de Almodóvar alcançaria o ápice no seu clássico “Tudo Sobre Minha Mãe” (1999), talvez o melhor de sua filmografia. Nunca os risos e as lágrimas ficaram tão bem dosados, nunca o kitsch se tornou chique e o sombrio tão apaziguador. Mesmo em “Fale com Ela” (2002), filme com destaque masculino, a ótica feminina é o que prevalece.
As mulheres do espanhol são incontroláveis, sexualmente fortes e passionais sem arrependimentos. Sem Almodóvar, a cinematografia não seria tão coloridamente fascinante.
Parafraseando uma clássica frase do filósofo Nietzsche, o cinema sem as películas de Pedro Almodóvar seria um erro. O exagero é necessário, afinal, não se trata de um normal, mas da pessoa que consegue tirar graça das tragédias. O diretor espanhol possui mais peculiaridade do que a invasão dos Estados Unidos no Iraque, do que a derrota da seleção brasileira na Copa de 1998 e do que a morte de Getúlio Vargas. Ele é praticamente a melhor tradução da idiossincrasia. As suas mulheres bizarras são sexys, os seus personagens são afavelmente caricatos, seus roteiros são miscelâneas de absurdos deliciosos e suas metáforas visuais são deleites antropofágicos para os puristas.
A extensa filmografia de Almodóvar iniciou em 1974, quando dirigiu dois curtas-metragens, “Film Político” e “Dos Putas, A Historia de Amor que Termina en Boda”. Herdeiro direto da linguagem pitoresco-criativa do diretor Luiz Buñuel, influência soberana nos arquétipos almodovarianos, o criador de figuras berrantes e cativantes nasceu pobre em Calzada de Calatrava e ajudava a família em um comércio de objetos de segunda mão. Desde cedo tinha uma única certeza: trabalhar com arte.
No início da década de 1970, mudou-se para Madri, cidade-fetiche mostrada em vários de seus filmes. Estudou cinema na Escuela Oficial de Cine, mas não concluiu o curso devido ao governo do ditador Francisco Franco. Na infância, recebeu ensino religioso. Ganhou traumas. Perdeu a fé. Foi abusado. Resquícios daquelas tristes memórias ganharam físico no longa-metragem “A Má Educação” (2002), um quase fato real baseado em sua experiência em um colégio administrado pela igreja católica, instituição a qual ama ridicularizar em seus compêndios de escárnio e exacerbações. Em “Maus Hábitos” (1983), Almodóvar destilou o seu veneno no roteiro do filme que apresenta um surreal convento habitado por freiras lésbicas e taradas, tudo pintado nas infindáveis cores fortes que cospe em suas direções fotográficas. Afinal, só mesmo o espanhol consegue combinar o gritante vermelho de batons com paredes verde limão, sapatos rosa com cabelos amarelos e vestidos de poá azul com música do Caetano Veloso.
Sem Almodóvar o cinema mundial não teria o preconceito tratado de maneira original. Homossexual assumido, a polêmica pode ser considerada um adjetivo em seus longas-metragens. Em “Labirinto das Paixões” (1982), o autor escreveu um inusitado roteiro onde o filho gay de um imperador se envolve amorosamente com um terrorista que, por sua vez, tem um romance com uma ninfomaníaca. Ojeriza total aos padrões.
Essa característica controvertida já vinha de outros tempos. Antes de se aventurar atrás das câmeras, ele escreveu uma novela em histórias em quadrinhos chamada “Fogo nas Entranhas” e desenvolveu uma fotonovela pornô, “Toda Tuya”. O passado só foi válvula de escape para as suas futuras doidices cinematográficas.
Alma feminina
No final da década de 1980, Almodóvar seguiu uma direção de lirismo marginal mais suavizado, contudo, sem perder os alfinetes palavreados e a estética visual de personagens estróinas. Seu interesse se voltou às mulheres. A sutil mudança lhe rendeu uma indicação ao Oscar na categoria de Melhor Filme Estrangeiro por “Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos” (1988).
As complexas facetas femininas também davam as caras em seus longas seguintes, “Ata-me” (1990), “De Salto Alto” (1991), “Kika” (1993) e “A Flor do Meu Segredo” (1995). Mas a sua fama de relator urbano do dito sexo frágil nada seria sem a contribuição que conseguiu fazer com atrizes tão talentosas como Carmen Maura (sua parceira artística mais fiel), Cecilia Roth, Marisa Paredes, Victoria Abril, Rossy de Palma e Penélope Cruz. A última, inclusive, só se tornou o que é hoje graças ao apadrinhamento de Almodóvar. Suas primeiras atuações eram dignas de teatro feito em jardim da infância. Depois de dirigida pelo espanhol, aprendeu os mecanismos da profissão, faturando prêmios ao redor do mundo, como o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante por “Vicky Cristina Barcelona” (2008).
O universo feminino de Almodóvar alcançaria o ápice no seu clássico “Tudo Sobre Minha Mãe” (1999), talvez o melhor de sua filmografia. Nunca os risos e as lágrimas ficaram tão bem dosados, nunca o kitsch se tornou chique e o sombrio tão apaziguador. Mesmo em “Fale com Ela” (2002), filme com destaque masculino, a ótica feminina é o que prevalece.
As mulheres do espanhol são incontroláveis, sexualmente fortes e passionais sem arrependimentos. Sem Almodóvar, a cinematografia não seria tão coloridamente fascinante.
Leonardo Handa – Jornalista