Meu nome é Leonardo Silveira Handa. Jornalista. Perdido. Achado. Amante. Radialista.

sexta-feira, novembro 02, 2018

Finada
Uma canção de beijos desesperados rola no iPod. Meia luz no apartamento. Ela, deitada no sofá, olha a foto mais feliz: lábios em contato acompanhando a canção. A água ameaça pingar da torneira da cozinha, mas o que desliza é a mão pelo rosto. O cantor da música dá razão aos sentimentos da moça. O tom aumenta e um falsete desesperado rasga o seu tímpano sofrido. O olho não segura e permite um deslize.
A lágrima encontra a almofada, que está molhada desde o verão passado. A sequência de acordes termina e ela volta ao zero, coloca no repeat e se deixa envolver pela atmosfera subversivamente caótica da canção.
Levanta-se como quem quisesse se deitar novamente, lança um olhar de desprezo para a foto e grita ao primeiro corte. A canção está tocando pela terceira vez. Os joelhos encontram o chão e uma surdez mórbida a invade por alguns segundos.
Ela sente deliciosamente o que pensou ser uma lâmina. O objeto fica encaixado enquanto o fluído ameaça escorrer. Desliza. Lisa. Desfaz. Delícia.
Deita-se no tapete felpudo e se deixa atingir por mais um golpe. Dessa vez não resiste e se agarra no vazio sentir do momento. E o iPod para de funcionar.
lsH
O casal
Na calmaria das coisas um caos manifestado. Difícil relatar os acontecimentos, queria relaxar em nosso apartamento e comentar os fatos do dia-a-dia. Colocar Tori Amos na vitrola e divagar o afeto. Mas sempre vem o contrário, as contas a pagar, o carro para lavar, o cachorro para alimentar, a poeira dos móveis para tirar, a louça para guardar, o guarda-roupa para arrumar. Está ficando difícil. Quando foi a última vez em que fomos ao cinema? Aquele do Woody Allen ainda era um lançamento. Quando foi a última vez em que abrimos uma boa garrafa de uísque? Aquela que compramos já está completando 12 anos. Acho que agora é a hora.
Não era isso que eu imaginava. Na adolescência, eu pensava que conforme fossemos crescendo os tempos seriam mais proveitosos. Estão sendo criminosos. Crime por não aproveitarmos o salário para gastar com cerveja, crime por não podermos gozar a rotina: crime de falta de tempo. Eu queria ser um outro tipo de criminoso, um hiperbólico das vontades prazerosas, da leitura de Bukowski aos solos de Miles Davis, dos goles à beira-mar ao caminhar noturno em Caiobá. Aliás, aquele verão ainda estamos deixando para mais tarde, como aquela canção do Amarante. Hora de mudar. E depois de tudo, descansar em paz, sem aquela culpa de que poderíamos ter visitado a família, ter ligado para os amigos. Sem ressentimentos, sem argumentos, sem explicação. Simplesmente fechar os olhos e dormir, de preferência, acompanhados de Manu Chao, Jarvis Cocker e Lauryn Hill, a sua preferida.
Agora estamos aqui, definindo quem vai ao banco amanhã, quem comprará o gás, quem pagará a luz, quem procurará veterinário para o totó, quem mandará instalar a internet, quem levantará cedo para atender o cara que vai arrumar a geladeira e quem buscará a roupa na lavanderia. Que coisa. Quero uma vidinha um pouco mais ordinária... Como aquela canção do Neil Young.
lsH
Estamos sendo vigiados. Estão conseguindo fazer uma ditadura maquiada. Os esquerdistas serão expostos contra muros de fuzilamentos. O Partido dos Trabalhadores foi dizimado e não vai se recuperar. Os outros sofrerão com o poder dos homens. Os Policiais Militares não vão aceitar críticas, sobretudo de artistas, e vão adentrar teatros como era antigamente. Um filme como Tropa de Elite nunca chegará aos cinemas nacionais. Aliás, o último com crítica política será Aquarius. Os demais projetos serão engavetados.
Quando chegamos em um momento em que a "maior instituição" deste país relacionada às lutas sociais, que eram os estudantes, renega o protesto, é porque se perdeu a luta e será preciso repensar a briga por direitos. E se você não está preocupado com os próximos 20 anos e somente com o hoje, saiba que de repente o seu agora é dizimado com pólvora diante de seus olhos neste momento.
Não se esqueça, estamos sendo vigiados.