Meu nome é Leonardo Silveira Handa. Jornalista. Perdido. Achado. Amante. Radialista.

sexta-feira, maio 26, 2006

Beijo


Um beijo confuso. Molhado. Quente. Ardente. Propositalmente acontecido, acompanhado de um roçar lento de narizes. Situação orgástica. O lábio deslizava pelo queixo e o rosto áspero procurava o carinho da mão. Os olhos úmidos cruzavam visões com ângulos fechados. Os dedos tinham cheiro de fumaça, de uísque, de grama cortada, de sangue. As unhas borradas eram escárnios, de uma rudeza completamente bela. A maquiagem torta estava apanhada. Havia uma escuridão nos cílios que causava uma vontade doentia de iluminá-los. A boca era de um desenho estranho, quase cubista, mas que se encaixava perfeitamente. O toque lento por vezes ficava afoito. A respiração lenta acertava os póros que rebatiam novamente o ar. A pele morena ganhava proporções de pintura perfeita enquanto as luzes dos carros refletiam na tez.
Após o beijo que pareceu um canto dissonante de elfos clamando alegria, o mundo começou a ser um lugar bonito. A brisa da noite tinha aroma de baunilha. O silêncio se fez presente. Apenas um murmúrio singelo quebrou e acompanhou a sinfonia de motores de carros, buzinas, tiros, crianças gritando, putas no cio, rapazes expostos, policiais observando, meninas cheirando, garotos morrendo e cachorros fodendo.
Um cigarro foi aceso. A fumaça penetrou no ar denso. A outra mão procurou consolo e foi aceita pela ulterior que vazia também pedia aconchego. Novamente um outro beijo aconteceu. Ainda mais tenso, mais abstruso. Difícil entender. As bocas pareciam ímãs. Um sabor cáustico era sentido e os corpos encostaram-se ao poste da esquina, fetidamente perfeito. O local era de uma sujeira bem articulada, com traços embriagados e decoração pesadamente negra, como uma película de Marcelo Piñeyro.
Amantes torpes se deixaram entregar em um momento. Não foi efêmero, nem trivial. Havia constância. Cada qual atravessou a rua, sem palavras, sem despedida. Seguiram os seus caminhos, este sim, planejado pelo horário e pelos clientes que esperavam. Ela entrou em um carro cinza. A outra ficou utilizando o poste como apoio. Ambas sumiram quando a névoa subiu, mas o beijo se tornou eterno nos instantes que as solitárias sentiram uma razão de existência.

L.S. Handa